Terminei o meu último post dizendo que a consciencialização das pessoas para a ciência consegue-se com conhecimento. Mas como se consegue esse conhecimento? Por mais bem-vindas que sejam as cada vez mais raras iniciativas de divulgação científica às pessoas, isso em geral afecta muito pequenas partes da população, e ficam longe desse objectivo de consciencialização global que se pretende. Excepções só mesmo com algo da dimensão da série dos anos 80 Cosmos, da autoria de Carl Sagan, que de facto penso que conseguiu chamar muita gente para a ciência. Mas a verdade é que a maioria dos programas ou livros que temos nesse sentido, não têm essa dimensão. Torna-se claro, então, que essa consciencialização tem que vir do próprio ensino.
Referi também no último post que uma frase de Feynman com mais de 20 anos continuava hoje actual. A verdade é que podemos ir ainda mais atrás no tempo. Há alguns dias, Nuno Crato escreveu um artigo no Expresso intitulado Duas Culturas, em que recorda uma conferência de Charles Percy Snow (cientista, político, romancista) já com 50 anos. C.P. Snow, enquanto homem das letras e das ciências, tinha, mais que ninguém, o direito de falar das Duas Culturas - a cultura científica e a cultura humanística - que segundo ele se haviam tornado inconciliáveis.
Aproveitei para ler a conferência de C.P. Snow e, por incrível que pareça, sobre a parte das duas culturas, ninguém diria que entretanto passaram 50 anos. Snow critica a falta de cultura literária de alguns cientistas, mas fica sobretudo espantado pela ignorância e pelo desprezo dos "intelectuais humanistas", expressão que frequentemente utiliza, face às ciências. Uns dias antes de ler a conferência, por acaso, perguntei-me quantas pessoas sem formação cientítica saberiam do que trata algo tão básico como "a queda dos graves", de Galileu. Curiosamente, Snow pergunta algo que está relacionado, mas vai ainda mais longe: quantas pessoas saberiam "qual é o significado científico de aceleração?", pergunta que, segundo ele, é o equivalente a perguntar a um cientista "sabe ler?". *
C.P. Snow atribui parte da culpa da divergência entre as duas culturas ao sistema de ensino britânico, que, segundo ele, obrigava demasiado cedo os estudantes a escolher uma via específica de ensino, e isso limitava os seus conhecimentos de cultura geral das restantes áreas. Fazendo agora a ponte para o início do texto, em que queria falar do ensino, defendo que esse problema que Snow aponta também se passa no ensino português de hoje. Basta ver que, no ensino secundário, a matemática não é obrigatória nem no agrupamento de artes nem no de humanidades. A matemática passou a ser vista apenas como a linguagem das ciências exactas e um instumento de auxílio às ciências económicas, desaparecendo uma das suas propriedades mais fundamentais: o facto de ser uma disciplina de base do conhecimento, por permitir às pessoas desenvolver um raciocínio lógico exacto e um pensamento científico racional. É assim que queremos consciencializar as pessoas para uma cultura científica?
É claro que depois vem o contra-argumento típico: "a matemática nunca me vai servir para nada na prática". E eu pergunto: para que me vai servir saber em que data começou a II Guerra Mundial? E conhecer parte de Os Lusíadas? Bem, a resposta é simples e óbvia: vai servir para aumentar o meu conhecimento sobre a sociedade e para me permitir reflectir sobre ela. E essa é a coisa mais importante que o ensino pré-universitário pode ensinar a um estudante: ensiná-lo a pensar. Não estamos (ou não deviamos estar) a formar máquinas, que apenas sabem resolver os problemas para que foram programados; estamos, sim, a formar seres humanos pensantes. E voltando à matemática, essa é outra importante razão pela qual devia ser obrigatória no ensino secundário: ensina a pensar; um tipo de pensamento que exige esforço e raciocínio, e em que não vale aldrabar. E esse tipo de pensamento é essencial a qualquer área do conhecimento.
Para terminar e resumir, dois últimos pontos: (1) Um estudante deve poder escolher a área que mais gosta no ensino secundário, e ser introduzido às disciplinas específicas dessa área, mas nunca deve deixar de ser leccionado sobre as disciplinas essenciais para o conhecimento geral: português, inglês... e, por exemplo, matemática e história (aí está outro erro, história não ser obrigatória para todos os cursos no ensino secundário, o que dá lugar a graves lacunas em muitas pessoas) **; (2) O conceito de cultura geral tem que deixar de estar associado a conhecer a história e a geografia, os clássicos da literatura, etc.: na sociedade em que vivemos, altamente dependente da ciência, a cultura científica também tem que ser parte integrante da cultura geral!
* Só por curiosidade, C.P. Snow faz ainda outra comparação: diz que perguntar a alguém sem formação científica o que é a Segunda Lei da Termodinâmica, seria o mesmo que perguntar a alguém cientista se já leu alguma coisa de Shakespeare.
** Pode-se responder a isto dizendo que desta forma as disciplinas gerais obrigatórias seriam tantas que ficariamos sem lugar para as disciplinas específicas. É evidente que teria que ser repensado quais são as disciplinas verdadeiramente essenciais e rever grande parte dos programas para conseguir conciliar as duas coisas, mas isso daria lugar a outra discussão que não quis abordar aqui.
Referi também no último post que uma frase de Feynman com mais de 20 anos continuava hoje actual. A verdade é que podemos ir ainda mais atrás no tempo. Há alguns dias, Nuno Crato escreveu um artigo no Expresso intitulado Duas Culturas, em que recorda uma conferência de Charles Percy Snow (cientista, político, romancista) já com 50 anos. C.P. Snow, enquanto homem das letras e das ciências, tinha, mais que ninguém, o direito de falar das Duas Culturas - a cultura científica e a cultura humanística - que segundo ele se haviam tornado inconciliáveis.
Aproveitei para ler a conferência de C.P. Snow e, por incrível que pareça, sobre a parte das duas culturas, ninguém diria que entretanto passaram 50 anos. Snow critica a falta de cultura literária de alguns cientistas, mas fica sobretudo espantado pela ignorância e pelo desprezo dos "intelectuais humanistas", expressão que frequentemente utiliza, face às ciências. Uns dias antes de ler a conferência, por acaso, perguntei-me quantas pessoas sem formação cientítica saberiam do que trata algo tão básico como "a queda dos graves", de Galileu. Curiosamente, Snow pergunta algo que está relacionado, mas vai ainda mais longe: quantas pessoas saberiam "qual é o significado científico de aceleração?", pergunta que, segundo ele, é o equivalente a perguntar a um cientista "sabe ler?". *
C.P. Snow atribui parte da culpa da divergência entre as duas culturas ao sistema de ensino britânico, que, segundo ele, obrigava demasiado cedo os estudantes a escolher uma via específica de ensino, e isso limitava os seus conhecimentos de cultura geral das restantes áreas. Fazendo agora a ponte para o início do texto, em que queria falar do ensino, defendo que esse problema que Snow aponta também se passa no ensino português de hoje. Basta ver que, no ensino secundário, a matemática não é obrigatória nem no agrupamento de artes nem no de humanidades. A matemática passou a ser vista apenas como a linguagem das ciências exactas e um instumento de auxílio às ciências económicas, desaparecendo uma das suas propriedades mais fundamentais: o facto de ser uma disciplina de base do conhecimento, por permitir às pessoas desenvolver um raciocínio lógico exacto e um pensamento científico racional. É assim que queremos consciencializar as pessoas para uma cultura científica?
É claro que depois vem o contra-argumento típico: "a matemática nunca me vai servir para nada na prática". E eu pergunto: para que me vai servir saber em que data começou a II Guerra Mundial? E conhecer parte de Os Lusíadas? Bem, a resposta é simples e óbvia: vai servir para aumentar o meu conhecimento sobre a sociedade e para me permitir reflectir sobre ela. E essa é a coisa mais importante que o ensino pré-universitário pode ensinar a um estudante: ensiná-lo a pensar. Não estamos (ou não deviamos estar) a formar máquinas, que apenas sabem resolver os problemas para que foram programados; estamos, sim, a formar seres humanos pensantes. E voltando à matemática, essa é outra importante razão pela qual devia ser obrigatória no ensino secundário: ensina a pensar; um tipo de pensamento que exige esforço e raciocínio, e em que não vale aldrabar. E esse tipo de pensamento é essencial a qualquer área do conhecimento.
Para terminar e resumir, dois últimos pontos: (1) Um estudante deve poder escolher a área que mais gosta no ensino secundário, e ser introduzido às disciplinas específicas dessa área, mas nunca deve deixar de ser leccionado sobre as disciplinas essenciais para o conhecimento geral: português, inglês... e, por exemplo, matemática e história (aí está outro erro, história não ser obrigatória para todos os cursos no ensino secundário, o que dá lugar a graves lacunas em muitas pessoas) **; (2) O conceito de cultura geral tem que deixar de estar associado a conhecer a história e a geografia, os clássicos da literatura, etc.: na sociedade em que vivemos, altamente dependente da ciência, a cultura científica também tem que ser parte integrante da cultura geral!
* Só por curiosidade, C.P. Snow faz ainda outra comparação: diz que perguntar a alguém sem formação científica o que é a Segunda Lei da Termodinâmica, seria o mesmo que perguntar a alguém cientista se já leu alguma coisa de Shakespeare.
** Pode-se responder a isto dizendo que desta forma as disciplinas gerais obrigatórias seriam tantas que ficariamos sem lugar para as disciplinas específicas. É evidente que teria que ser repensado quais são as disciplinas verdadeiramente essenciais e rever grande parte dos programas para conseguir conciliar as duas coisas, mas isso daria lugar a outra discussão que não quis abordar aqui.