Monday, August 31, 2009

Politizações (II)

Em 1996, a revista Social Text publicou um texto com o seguinte título: Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica. No artigo, o seu autor analisava conceitos das ciências sociais, indo buscar conceitos das ciências exactas, usando-os da forma mais disconexa e sem sentido possível. Parte da sua argumentação baseava-se sobretudo em citações de filósofos e sociólogos célebres e, de uma forma geral, muito conceituados. O artigo foi aplaudido.

Passado um tempo, o seu autor revelou-se. Era Alan Sokal, professor de Física na Universidade de Nova Iorque. Aquele texto era, na verdade, uma paródia, que pretendia criticar o facto de muitos intelectuais das ciências sociais e humanas usarem e abusarem de conceitos das ciências exactas para dissertarem sobre tudo e mais alguma coisa.

Grande parte desses intelectuais, que Alan Sokal e Jean Bricmont (também físico) criticaram directamente no livro Imposturas Intelectuais, tinham formação nas ciências sociais e humanas, e defendiam quase todos o relativismo pós-moderno, em que a verdade não passa de uma convenção da sociedade. O discurso é sempre vago; vem não se sabe bem de onde, e não quer chegar a lado nenhum. Tem sempre um belo palavreado a disfarçar o vazio de ideias, e os conceitos que vai buscar às ciências exactas não têm qualquer relevância.

Acontece que a maioria destes autores são de esquerda. Então, o resultado foi o seguinte: muita gente viu o livro como uma crítica da direita em relação à esquerda, e daí retiraram as mais variadas implicações políticas. Mais um caso em que, em vez de se discutirem ideias, se quis resumir tudo a uma luta ideológica sem pés nem cabeça. Só vejo uma razão para se preferir teorias da conspiração deste tipo em vez de se contra-argumentar o que Sokal defende: ausência de ideias.

O mais irónico de tudo, e que acaba de vez com a discussão política da questão: o próprio Sokal é de esquerda.

Saturday, August 29, 2009

Politizações (I)

Há umas semanas, depois do BlogConf se ter realizado com José Sócrates, realizou-se agora com Francisco Louçã. O professor Paulo Guinote esteve lá, em representação do Educação do meu Umbigo, e, como não podia deixar de ser, falou sobre educação.

Para começar, Paulo Guinote perguntou, muito directamente, se Louçã não considera que o programa do BE para a educação não é "o principal reduto de um certo discurso eduquês dos programas políticos para a educação em 2009". Louçã, como não podia deixar de ser, ligou a cassete anti-liberal e dispara que "o termo eduquês foi inventado por alguns teóricos da educação da ofensiva liberal contra o ensino". E acrescenta ainda: "a crítica que é feita por muitos teóricos da educação de direita, digo já que não a compartilho".

Este é o problema dos políticos quando abordam o tema da educação. A necessidade de reduzir tudo a uma luta ideológica entre esquerda e direita leva a que nunca se discuta o essencial da questão. Não faço ideia se, de uma forma muito geral, a esquerda sente mais simpatia pelas ideias do eduquês e a direita as critíca mais. Mas uma coisa sei: o eduquês não é uma ideia exclusiva da esquerda, e as críticas ao eduquês não são exclusivas da direita. Nuno Crato mostrou isso, sem deixar dúvidas, no seu livro O Eduquês em Discurso Directo com exemplos concretos de pessoas com determinadas convicções políticas, cujas opiniões sobre educação não se encaixam de todo neste estereotipo que se criou.

Mas enfim, para destronar crenças sem fundamentos, não há argumentos possíveis.

Tuesday, August 25, 2009

Carpe Diem

Ainda noutro dia falava com uns amigos sobre o facto de o significado da expressão carpe diem ser, hoje em dia, completamente adulterada pela maioria das pessoas. Todos sabem como se traduz - aproveita o dia - mas o significado que muitas vezes lhe dão é, curiosamente, quase o oposto do seu verdadeiro significado.

Aproveitar o dia, ao contrário do que muita gente pensa, não é ir andar de mota para a auto-estrada a 200 km/h, porque a vida é curta e se pode morrer a qualquer momento. Delfim Leão, da Universidade de Coimbra, explica neste texto isso muito bem. Destaco este parágrafo:

O convite ao carpe diem não ecoa somente o apelo ingénuo da irresponsabilidade inconsequente; obedece a um princípio mais profundo e, de resto, bem menos agradável: a consciência da caducidade da existência humana. Daí que a euforia inicial possa ser facilmente substituída pelo sentimento pessimista de quem está consciente de um fim próximo.

Monday, August 17, 2009

Redes Sociais

Não posso deixar de chamar a atenção para o excelente artigo desta semana de Miguel Sousa Tavares (MST) para o Expresso. Partilho da mesma preocupação em relação às consequências das grandes redes sociais que existem na internet, como o Facebook, embora este seja só um entre muitos exemplos.

Estes sites têm cada vez mais participantes, que, como MST apontou, justificam a sua participação activa com os mais variados argumentos pouco credíveis. Tal falta de credibilidade deixa em crer que esses argumentos são, na realidade, desculpas para esconder as verdadeiras razões por que participam. MST assume o carácter especulativo do discurso quando disserta sobre quais razões escondidas serão essas, mas a verdade é que o seu discurso faz completo sentido:

Na verdade, só há uma resposta que eu entenderia: estão no Facebook porque não conseguem enfrentar a solidão e vivemos um tempo em que, quanto mais se comunica, quanto mais se fala, quanto mais se apregoa, mais a solidão é funda e irremediável. E o Facebook é o instrumento perfeito para criar a ilusão de que não se está sozinho, mas acompanhado por uma vastidão de amigos. Basta escolher um 'perfil', carregar num botão e esperar que um desconhecido nos aceite como amigo. E, se esse não aceitar, há mais uns milhões, o universo todo, para tentar de novo. Quem disse que é difícil fazer amigos? Que é difícil encontrar pessoas interessantes? Que, hoje em dia, não há tempo para conhecer pessoas novas? Que as relações humanas são complicadas? Eis o instrumento que veio pôr fim a tudo isso. Agora, com o Facebook, só está só quem quer.

Essa explicação eu entenderia: é séria, é real, é humilde. Só que, essa, ninguém a dá. Menos ainda se atreverão a confessar outro tipo de razões pelas quais eu desconfio que muita dessa Humanidade perde horas preciosas das suas vidas amarrada à coisa (embora todos jurem também que raramente lá estão). As razões inconfessadas são estas (e isto é uma teoria muito pessoal): a) - para arranjar parceiros amorosos ou apenas sexuais; b) - para se exibirem a si mesmos, às suas vidas, às fascinantes personagens que todos se imaginam ser; e c) - para vasculharem a vida dos outros.

Em seguida, MST analisa as consequências da proliferação deste método de criar relações que não o são. Apresenta diversos pontos, alguns um pouco exagerados, mas não posso deixar de considerar que a hipérbole talvez seja apropriada. De qualquer forma, toca num aspecto que me parece particularmente relevante e preocupante: a total perda de noção do que é o espaço íntimo e privado, face ao que é o espaço público.

Vocês, os 'amigos' do Facebook, conseguiram transformar em realidade o pesadelo do Orwell e o sonho de todas as polícias: montaram uma rede onde todos se cruzam e expõem, onde é fácil descobrir o paradeiro de cada um, mesmo quando ele não quer, onde se estabelecem relações amorosas por magnetismo virtual, se desvendam traições e adultérios, se partilham segredos no meio da multidão, se revelam as fotografias e as andanças que deveriam ser íntimas, e onde se faz tudo isso com uma compulsão de drogados, viciados em voeyurismo e exibicionismo. Vocês, caros 'amigos' e 'amigas', transformaram o Big Brother numa realidade planetária. Mas com a diferença de que não é ele que vos vigia contra vontade, mas vocês que se lhe oferecem voluntariamente.

O facto de, actualmente, a esfera íntima e a esfera pública se confundirem desta forma perturbante, juntamente com o desenvolvimento destas redes sociais em que se fazem amigos como se bebe um copo de água, são responsáveis pela progressiva perda de significado das relações humanas. O verdadeiro significado de uma relação pessoal, e o que a torna tão especial, está, em parte, na intimidade que ali se esconde, e que a torna única. Num mundo em que a intimidade está à vista de todos, e em que os amigos estão à distância de um clique no rato, o que é especial e único torna-se, inevitavelmente, vulgar e sem importância.

No entanto, perto do fim do texto, discordo de MST, que quase vê o Facebook como o anunciar do fim do mundo. Eu, pelo contrário, quero acreditar que o que se vai passar é diferente. Quero acreditar que, no fundo, as pessoas continuam a saber que um ser humano é demasiado complexo para ser resumido num perfil de uma página, e que este não só não mostra, de todo, o que uma pessoa é, como pode ser completamente enganador; quero acreditar que as pessoas continuam a ter consciência de que listas de preferências e gostos semelhantes podem não ter absolutamente nada que ver com a ligação que pode vir a existir entre essas duas pessoas; quero acreditar que as pessoas continuam a preferir o carácter pessoal e espontâneo de um olhar e de um sorriso em determinado momento do que o carácter artificial das fotografias; quero acreditar que nunca ninguém vai considerar que conhecer alguém de uma forma tão impessoal como através de perfis e de listas de gostos se aproxima de alguma maneira da extraordinária sensação de quando se conhece alguém de carne e osso, frente a frente, e se sente como essa pessoa pode vir a ser especial.

Finalmente, quero acreditar que quando as pessoas reflectirem e se aperceberem de tudo isto, o Facebook e outros sites idênticos irão perder os seus clientes, e não terão passado de uma moda passageira para esquecer. Mas admito que este pensamento é muito pouco científico: esta minha crença está ainda por confirmar.

EDIT: À conversa com uns amigos sobre este tema, uma amiga lembrou-me que talvez essa minha crença não seja tão infundada. Basta lembrar o IRC, onde o contacto entre pessoas era estabelecido por mero acaso, seleccionando-se aleatoriamente um nick entre centenas. O IRC, no entanto, passou de moda não graças a estas redes sociais que na altura não existiam, mas sim graças ao msn, um excelente modo de comunicação. Talvez, afinal, a minha esperança seja até bastante razoável.

Saturday, August 15, 2009

Diferença e Igualdade

No livro The Blank Slate, Steven Pinker explica-nos a tese da tabula rasa: todos nascemos iguais, e, nessa altura, o nosso cérebro é uma espécie de página em branco, que é depois escrita e moldada pela cultura e pela sociedade. O expoente desta tese é o filósofo John Locke, que a explicou no livro Ensaio Acerca do Entendimento Humano.

Apesar da tese da tabula rasa estar completamente ultrapassada actualmente, tendo sido demolida pela ciência e pela psicologia moderna, a verdade é que continua a ter muitos adeptos. Nos capítulos seguintes do livro, Pinker tenta perceber as razões por que tal acontece. O autor conclui, então, que muita gente não quer deixar de acreditar na ideia do cérebro como uma página em branco por medo das consequências que isso poderia trazer. Isto é, Pinker diz-nos que, para essas pessoas, o facto de os seres humanos não nascerem todos iguais provoca-lhes quatro medos. São eles:
  • O medo da desigualdade: "If people are innately different, oppression and discrimination would be justified.";
  • O medo da imperfeição: "If people are innately immoral, hopes to improve the human condition would be futile.";
  • O medo do determinismo: "If people are products of biology, free will would be a myth and we could no longer hold people responsible for their actions.";
  • O medo do niilismo: "If people are products of biology, life would have no higher meaning and purpose.".
Podemos, então, concluir que a teoria continua a ser aceite por algumas pessoas não por ser cientificamente correcta (que não é), mas por ser a que mais se adequa às suas visões políticas. A verdade é que a tese da tabula rasa não se torna mais verdadeira por a defendermos com mais convicção política, ou por muito que veneremos o princípio da igualdade. A ciência não pode ser usada como arma política.

De qualquer forma, e é sobretudo sobre isto que incidem estes capítulos de The Blank Slate, o princípio da igualdade (e outros que consideramos igualmente essenciais numa sociedade livre e democrática) continua são e salvo, mesmo que não seja verdade que nascemos todos iguais. O facto de todos sermos diferentes não implica, como é evidente, a validade moral dos direitos individuais de cada um.

Mais ainda: Steven Pinker mostra que, se seguissemos a mesma ordem de ideias das pessoas que querem aceitar a teoria da tabula rasa por motivos políticos, então também essa teoria poderia ter consequências desastrosas, como teve no passado com o comunismo na Rússia e na China.

Em suma, aquilo de que nos devemos lembrar é que a nossa biologia não tem nada que interferir com os nossos valores éticos e morais. A certa altura, Pinker cita uma personagem de um filme de John Huston, The African Queen: Nature is what we are put in this world to rise above.

Thursday, August 13, 2009

Bandeira Monárquica


A acção da ala monárquica do 31 da Armada não é para levar a sério, e nem eles queriam que fosse. No entanto, é tão insignificante que não vale a pena perder tempo a comentá-la. De qualquer forma, não resisto a colocar aqui o comentário de Ferreira Fernandes sobre o sucedido, no Diário de Notícias. No típico estilo divertido do cronista, levou a acção como uma brincadeira insignificante (com piada ou não, isso já é mais discutível, em particular não achei lá muita, mas não deixa de ser uma brincadeira por causa disso) e compara uma monarquia a jogar no Casino. Aqui fica o texto:

Aprecio uma boa acção política. O cidadão que pela madrugada atravessou a Praça do Município de escada ao ombro, subiu à varanda e hasteou a bandeira da Monarquia tem a minha simpatia. Acção justa: defende uma causa. Acção oportuna: aproveita-se da proximidade do centenário da República. Acção no lugar certo: naquela varanda foi mudado o regime, em 1910. Acção estética: é bonita aquela bandeira. Acção bem propagandeada: filmou-se a coisa. E, sobretudo, acção como devem ser as políticas: comprometendo só quem a faz (não mandando outros à frente), e com um gesto sem consequências definitivas (não se arriscou sangue, só umas bordoadas na esquadra vizinha). É pena que com tanto acerto se descurasse um ponto: a causa em si. A causa é digna, já o disse, mas não me anima restaurar a Monarquia. Eu, quando quero jogar, vou ao casino. Apostar que o filho do rei, por ser filho do rei, é quem melhor nos governa pode dar jackpot (D. João II) ou a forte probabilidade de um cretino (a lista não cabe aqui). Mas, repito, gostei da acção. Como gosto de cada vez que a Liga para a Libertação dos Anões de Jardim rouba um.

Wednesday, August 12, 2009

A Favor dos Exames Nacionais

Em muitos textos que tenho lido, quase sempre de alunos, mas às vezes também de pais, professores ou de alguns “especialistas” em educação, pode ler-se a expressão Contra os Exames Nacionais. Neste texto, mesmo sabendo que vou contra a corrente do coro da maioria dos alunos, pretendo fazer um manifesto A Favor dos Exames Nacionais, mostrando que os argumentos tipicamente utilizados contra os exames não fazem qualquer sentido.

Um desses argumentos é o de que os exames nacionais, em vez de promoverem a igualdade, acentuam as desigualdades, pelo facto da educação não ser homogénea em todo o país. Não deixa de ser curioso que, no próprio argumento contra os exames, esteja uma das razões por que tem que haver exames nacionais: se a educação fosse igual em todo o lado, seria escusado existirem momentos em que os alunos fossem todos avaliados de forma igual, porque isso já se faria na avaliação contínua. É precisamente pelo facto das realidades das escolas serem tão diferentes que há necessidade de haver exames nacionais.

Mas analisemos com mais pormenor o problema. É evidente que uma turma com alunos com dificuldades não poderá, na avaliação contínua, ser avaliada com a mesma exigência que uma turma de excelentes alunos. O resultado disso seria que os excelentes alunos ficariam limitados pelos critérios de exigência fixados e não iriam progredir ao máximo, enquanto os alunos com mais dificuldades não iriam conseguir acompanhar o ensino.

Porém, temos também que pensar na situação contrária. O objectivo da avaliação, quando se concorre ao Ensino Superior, não é seleccionar aqueles que mais evoluíram (mesmo que continuem com um baixo nível de conhecimentos), mas sim os melhores. É isso que interessa a uma faculdade. Ora, a única forma de o fazer é com critérios de avaliação iguais para todos, isto é, com exames nacionais.

Tudo isto leva-nos a uma conclusão: a avaliação tem que ser criterial e normativa. Defender só a primeira é defender uma falsa igualdade que não selecciona os melhores, mas que apenas distingue a evolução individual de cada um. Defender só a segunda é limitar a aprendizagem tanto dos melhores alunos como daqueles que têm mais dificuldades. Quem é contra exames nacionais, defende que deveria haver apenas a primeira; quem é a favor defende que o modelo mais justo é aquele em que as duas existem simultaneamente. Como tal, acusações de radicalismo a quem defende os exames parecem-me altamente infundadas.

Para além disso, muitas vezes quem está contra os exames parece querer fazer passar a ideia de que estes acentuam a desigualdade, pois favorecem os ricos, que têm mais acesso à educação, e prejudicam os pobres, que têm menos. A falsidade deste argumento é tal que, na verdade, o que acontece é exactamente o oposto. Ainda no mês passado, Stephen P. Heyneman, professor de Política Educativa Internacional na Universidade de Vanderbilt, Tennesee, nos EUA, dizia que “testar é produzir igualdade”, isto é, testar é dar a oportunidade aos que são mais pobres de se afirmarem na sociedade.

Que isso acontece já deveria ser óbvio, na medida em que a maior parte dos grandes génios dos últimos séculos não vieram de famílias ricas, mas sobretudo da classe média, e muitos deles de famílias pobres. De facto, estudos efectuados em diversos países confirmam que as crianças de famílias pobres conseguem, muitas vezes, bons resultados. E a razão é a seguinte: “Quanto mais pobre, maior o impacto da educação. Quanto mais rico, maior o impacto da família.”, explica Heyneman.

Outro argumento típico é o de que é uma injustiça priveligiar-se o momento do exame, que dura umas poucas horas, ao trabalho continuado feito ao longo de vários anos. Este argumento falha desde logo pelo facto de ser mentira: não se priveligia o exame! O exame nacional, nas disciplinas em que existe, vale 30% da nota. Quanto à média das provas de ingresso, essa sim vale no máximo 50% da nota de candidatura. E vale muito bem! É preciso não esquecer que os alunos que concorrem a um curso resolveram todos as mesmas provas de ingresso, e a única forma justa que a faculdade tem de os seriar é sabendo que foram todos avaliados segundo os mesmos critérios. No entanto, acontece que só 50% da nota é que está nessas condições; a outra metade foi obtida segundo critérios que podem variar bastante de um aluno para outro. Como é que, se se reduzir o peso das provas de ingresso, a faculdade garante que está a seriar os melhores alunos?

Para além disso, este argumento mais uma vez vira o feitiço contra o feiticeiro. É precisamente pelo facto de duas horas não serem suficientes nem significativas para um aluno mostrar os seus conhecimentos, que é necessário que existam mais exames nacionais e repartidos por mais anos. Desta forma, espera-se que estes vão preparando psicologicamente o aluno para os resolver, e que a nota final fique repartida por vários exames. Um dia de azar, acontece. Vários, ao longo de três anos, é demasiada coincidência.

No entanto, mesmo considerando a situação presente, em que um único exame pode determinar 50% da nota, exagera-se ao defender a injustiça que isso provoca. Por duas razões. Primeiro, porque é costume tratarem-se as variáveis “trabalho continuado ao longo de vários anos” e “momento do exame” como se fossem completamente independentes. Na verdade, estão altamente ligadas. Mesmo considerando que há dias de azar e que esse dia pode calhar ser no dia do exame, essas variações são pontuais e não invalidam a estreita relação que existe entre as duas variáveis acima: de uma forma geral, quanto maior for o esforço e o estudo ao longo dos vários anos da disciplina, melhor correrá o exame. Nenhum atleta olímpico deixa de treinar pelo facto de poder ter um azar no dia da competição, pois sabe que quanto mais treinar, mais hipóteses tem de ficar bem classificado.

A segunda razão tem que ver com o facto de quase tudo na vida ser assim, grandes eventos definirem-se em curtos momentos, e ninguém ficar escandalizado com isso. Por isso, não percebo o porquê de tanto alarido em torno do facto de o mesmo acontecer com os exames. Um músico solista pode ter treinado muitas horas por dia durante largos meses para um concurso, mas o momento da verdade – a prova final – pode-lhe correr mal. Contudo, o júri só estava lá para o ouvir no dia da prova, e não para contar as horas que ele estudou. E lá por isso ninguém defende que ele leve um registo de horas de estudo e que isso lhe garanta o prémio. Outro exemplo: uma equipa de futebol pode ser em tudo superior a outra – treinou mais, jogou melhor em campo – mas o adversário teve a sorte de marcar mais golos. Mas não cabe na cabeça de ninguém que a taça vá para quem perdeu. É, pois, importante não esquecer a conclusão do parágrafo anterior, de que vale sempre a pena o esforço, pois este aumenta muito as hipóteses do momento decisivo – seja um exame, uma prova ou um jogo – correr bem. Ou, como disse Thomas Jefferson, “Acredito muito na sorte, pois percebi que quanto mais trabalho, mais sorte tenho”.

Enfim, de uma coisa não restam dúvidas: não há sistemas de avaliação perfeitos. Mas há sistemas de avaliação mais injustos e mais justos; menos credíveis e mais fidedignos. Para mim, depois de todas as razões que enunciei, é claríssimo que um sistema que se preocupa individualmente com os alunos, mas que não cai no erro de se esquecer do que cada um sabe em comparação com o outro; que utiliza avaliação contínua e exames nacionais em pesos idênticos; que valoriza a importância do esforço, do rigor, da exigência e da dificuldade em vez de promover o facilitismo e a injustiça, é um ensino adequado, embora, como qualquer outro, imperfeito. Mas, como questionava há umas semanas Filipe Oliveira, professor na FCT e vice-presidente da SPM, a propósito do mesmo tema “por não existirem termómetros perfeitos deve deixar-se de medir a temperatura?”*.

* O texto de onde retirei a citação de Filipe Oliveira é um dos melhores que li nos últimos temos sobre a importância dos exames nacionais, explicitando-a com argumentos claríssimos, ao mesmo tempo que arrasa uma entrevista de Leonor Santos ao Público, "especialista" em educação, cuja opinião é tão vaga que não se percebe muito bem o que pensa da existência de exames nacionais, nem enuncia que modelo de avaliação prefere e considera mais justo. O texto pode ser lido aqui e a continuação aqui.

Sunday, August 9, 2009

Quem gosta de ciências?

Desde que há exames nacionais que as disciplinas mais desastrosas do ensino secundário têm sido, salvo raras excepções, de ciências: matemática (embora não seja específica da área de ciências), físico-química e biologia-geologia. Soluções para subir as médias destas disciplinas só vi uma: o facilitismo nos exames de matemática nos últimos anos, que puseram as médias acima do 10 (o ano passado atingiu até o 14 para alunos internos). Ou seja, ano após ano deparamo-nos constantemente com a mesma realidade: o ensino das ciências está um desastre.

Razões para isto? Penso que a razão principal é muito bem explicada por José Manuel Fernandes, num texto de 2001 muito cidado (que inclusivé já foi citado neste blog), em que diz que aprender Física e aprender Matemática exige esforço, exige concentração, exige trabalho, exige fazer muitos exercícios, exige testar muitas vezes os conhecimentos, ginasticar o raciocínio. Ora, os alunos não só não fazem nada disso, como estão habituados a outra coisa, que JMF chama a arte nacional do desenrascanço, que pode vestir de belas palavras uma resposta ignorante em Humanidades - mas esbarra sem apelo nem agravo perante um problema concreto de Física ou de Matemática. É preciso, pois, consciencializar os alunos do esforço que estas disciplinas necessitam.

Não quero, no entanto, abordar neste texto a razão principal, mas sim outra razão mais lateral, que me parece mesmo assim bastante importante. Esta conclusão não retiro de qualquer estudo, mas apenas da minhas experiência pessoal e de um pouco de bom-senso, e como tal a sua validade é bastante questionável. De qualquer forma, tenho-me vindo a aperceber de que a maioria das pessoas que estão no agrupamento de ciências não gostam de ciências.

Os agrupamentos de artes e de economia são bastante específicos, e só tendem a escolhe-los quem de facto gosta das respectivas áreas. Em humanidades, salvo alguns casos que vão para lá para fugir à matemática, reparo que a maioria das pessoas tem um sincero interesse pelas letras e pela história, e são muitas vezes dotados de uma boa cultura literária e humanística, embora completamente ignorantes em cultura científica.

Já o agrupamento de ciências é abrangente nos temas que lecciona e nos cursos superiores que permite seguir. E, pensando mais a longo prazo, é o que mais saídas profissionais permite. O que tenho verificado é que muitos alunos escolhem esse agrupamento ou porque não sabem o que hão-de escolher mas têm consciência de que o agrupamento de ciências é o que menos lhes reduz as escolhas, ou por pressão dos pais, que também estão conscientes disso.

Tenho muita facilidade em encontrar pessoas apaixonadas pela área em que estão em artes e humanidades. Curiosamente, tenho muito mais dificuldade em fazê-lo em ciências, um agrupamento que tem, em geral, muito mais alunos. Embora seja uma causa menor, penso que esse ambiente de desinteresse também contribui para o insucesso de muitos alunos às disciplinas de ciências.

No entanto, acontece que o caso toma contornos ainda mais curiosos. Há também muitos alunos que, embora tenham excelentes notas nestas disciplinas, não têm grande interesse por elas. Lutam pelas notas porque sabem que a empregabilidade para determinados cursos de saúde e engenharia é elevadíssima, mas o seu interesse pela área é diminuto. E o caso mais evidente é medicina: alguém acredita que os alunos que entram para o curso são todos apaixonados por medicina?

É esta realidade que, pessoalmente, tenho encontrado. A sua validade é questionável pelo facto do meu meio ser reduzido, mas cada vez estou mais convencido de que assim é. E entristece-me o facto de, no agrupamento de ciências, o interesse pela empregabilidade exceda quase sempre o interesse pela área. As pessoas que encontro que na verdade gostam de ciências são muito poucas. Não percebo porquê, e partilho o espanto de João Lobo Antunes quando questiona, num texto que já aqui citei, será que não há já ninguém que saiba revelar a estas inteligências virgens a extraordinária beleza da Matemática, criação dos homens e dos deuses?

Thursday, August 6, 2009

Férias

A interrupção de mais de uma semana do blog não se deveu a falta de interesse ou de ideias para escrever, mas ao facto de ter tido umas merecidas férias de uma semana na Bélgica e na Holanda, países que nunca tinha visitado. Foi uma excelente viagem, nem que fosse apenas pelo facto de ter conhecido cidades tão marcantes na Europa como Bruxelas e Amsterdão, e por ter ido a Delft, onde fica a Universidade onde poderei vir a estudar futuramente.

Acontece que aquilo que mais esperamos ver por vezes é o que mais nos desilude, e às vezes também temos surpresas onde não esperamos. A "capital europeia", por exemplo, desiludiu-me bastante. Tirando aquela majestosa Grand Place, a maior parte da arquitectura tem de grandiosidade o que lhe falta em bom gosto. E o edifício da Comissão Europeia é o exemplo máximo deste estilo.

A surpresa veio sobretudo em Roterdão, cidade sobre a qual tinha pouco conhecimento. Tendo sido quase totalmente destruída durante a II Guerra Mundial, a cidade foi depois reconstruída, apresentando por isso um modernismo que se caracteriza muitas vezes por arranha-céus com cores garridas e prédios com formas pouco vistas, tudo isso com tremendo bom gosto. Para além disso, a limpeza da cidade, a simpatia das pessoas e o facto de não se ver mendigos nem sinais de pobreza impressionaram-me.

E depois o contraste da capital. A legalização das drogas leves e da prostituição fizeram com que o centro de Amsterdão se tenha tornado um local algo degradante em termos de ambiente. Aqui, alguns sinais de pobreza e de mendigagem já são claros, assim como de alguns problemas de segurança. É, na minha opinião, o preço a pagar pelo excesso da liberalização social. Claro que, tirando isso, é uma belíssima cidade.