O Livro do Desassossego, escrito não por Fernando Pessoa ortónimo mas pelo semi-heterónimo Bernardo Soares, é um livro completamente fragmentado em pequenos excertos que, aparentemente, não formam uma grande ligação lógica entre si. No entanto, à medida que se vai lendo o que lá está escrito, apercebemo-nos de que naquelas centenas de excertos está uma visão completíssima da vida e do mundo. Não é, contudo, um debitar de opiniões pessoais: é como se alguém nos falasse do outro lado, desabafando com toda a sinceridade e honestidade. Foi isso que levou Pessoa a dizer, sobre Bernardo Soares, que "o Livro do Desassossego não é dele, mas é ele próprio".
Sempre que leio algo de Pessoa surpreendo-me de alguma forma. E esta vez, em que me pus a ler/reler alguns excertos do Livro do Desassossego, não foi excepção. Isto porque é muito comum ligar-se Fernando Pessoa ao ocultismo, à espiritualidade e ao misticismo. No entanto, a verdade é que o excerto 256 deixaria qualquer defensor do cepticismo sem palavras a acrescentar.
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas - intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas- a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações colectivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demónios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distracção, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.