Volta e meia, o PCP lá nos vai brindando com afirmações que parecem vindas de outro mundo. Desde a democracia da Coreia do Norte de Bernardino Soares aos gulags que talvez tenham existido de Rita Rato, há muito por onde escolher. Estas sucessivas afirmações passam sem causar escândalo ou polémica. Aconteceria o mesmo se um deputado afirmarsse que os campos de concentração nazi talvez tenham existido, mas que não sabe porque não estudou isso muito bem? Não, não aconteceria. E ainda bem, pois seria muito negativo que uma afirmação dessa gravidade fosse deixada passar assim. Só não percebo o porquê da reacção pública, de uma forma geral, ter diferentes critérios consoante o sabor do vento. Terão sido as milhões de mortes nos gulags de menor importância que as dos campos de concentração?
Agora, foi a vez do jornal Avante! ter dedicado uma bela prosa (tão bela que é de ficar com os olhos arregalados) à queda do muro de Berlim. Entre outras coisas, diz o seguinte:
A realidade das últimas duas décadas, não só na Alemanha de Leste, mas também na generalidade dos antigos países socialista do Centro e Leste Europeu, já para não falar da URSS, não testemunha qualquer progresso, por mínimo que seja, para o povo, mas antes um tremendo retrocesso económico e social que reduziu à miséria amplas camadas da população, condenou a juventude ao desemprego, privando a grande maioria de uma perspectiva optimista de futuro.
E, citando um antigo chefe de estado da RDA e dando a entender que o autor concorda com as suas afirmações (aqui fica o link, para não retirar a citação de contexto), está escrito:
«Cada vez mais alemães de Leste constatarão que tinham as condições de vida menos deformadas na RDA do que os alemães ocidentais com a economia “social” de mercado; que as crianças da RDA, nas creches, jardins-de-infância e escolas cresciam mais felizes, menos preocupadas, mais bem formadas e mais livres que as crianças da RFA (...). Os doentes constatarão que, apesar dos seus atrasos técnicos, o sistema de saúde da RDA os considerava como pacientes e não como objectos comerciais (...) Os artistas compreenderão que a censura da RDA, real ou imaginada, não era tão hostil aos artistas como a censura do mercado (...) Reconhecerão que na vida quotidiana, em particular no local de trabalho, tinham na RDA uma liberdade inigualável.»
Só há duas razões para que textos como este passem sem causar escândalo na sociedade portuguesa. Ou é porque aceitamos o que aqui é dito como sendo uma opinião perfeitamente válida, e consonante com o que na realidade se passava na RDA e na URSS; ou então porque achamos estas afirmações tão insignificantes e boçais, de tão ridículas que são, que já não lhes damos qualquer importância. Resta-me esperar que seja pela segunda razão, pois seria grave adulterarmos os factos mais negros da nossa História. Primeiro, porque seria um desrespeito perante os milhões de mortos pelas mãos do regime da URSS, e em particular por aqueles que morreram a tentar atravessar o muro; segundo, porque seria perigoso que as gerações futuras não conhecessem os erros do passado.
É, aliás, a falta de respeito pelas vítimas que mais me choca. Que se atribue à palavra liberdade um conceito altamente duvidoso... enfim, cada um de nós gostará de viver sob determinado regime político, e não vou discutir gostos. Mas que um partido que tanto gosta de glorificar (e justamente) aqueles que sofreram às mãos da ditadura salazarista, lutando contra ela, decida dedicar um texto à "liberdade inigualável da RDA" e se esqueça de referir as centenas de pessoas que morreram a tentar passar o muro, é no mínimo nojento.