Os professores das disciplinas de humanidades, e os humanistas (no sentido de formados na área das humanidades) de uma forma geral falam numa crise das humanidades, no sentido de estarem a ser desprezadas nos conteúdos programáticos. Mesmo não estando dentro da área, acho expectável que isso esteja a acontecer: afinal, a tendência actual para favorecer o que é prático e utilitário ao que é puramente teórico certamente excluirá as humanidades do que se considera essencial.
Apesar disso, e sendo de facto esta a principal causa do decaimento das humanidades, não deixa de ser curioso verificar que pode haver também uma parte de culpa própria nesta crise. O problema é o seguinte: o pensamento pós-moderno atingiu grande parte das humanidades; com isto, quando vemos os nossos "grandes pensadores humanistas" (como Boaventura Sousa Santos, só para dar um exemplo) a falar, dizendo coisas estranhíssimas, como a verdade não existir e cada um ter a sua verdade, como todas as opiniões serem respeitáveis porque tudo é uma convenção social, ou como a ciência não passa de uma forma de ver a realidade tão válida como a astrologia, fica a sensação de que esta coisa das humanidades afinal não passa de uma espécie de bruxaria mas num tom mais intelectual.
Em particular, muitos destes humanistas adoptaram um discurso que despreza a técnica, favorecendo a intuição. Depois, falam muitas vezes na "liberdade de pensamento", o que não costuma passar de uma desculpa para se poder dizer as asneiras que se quiser, já que no limite, como tudo é subjectivo e tudo é uma convenção social, já não há diferença entre verdade e mentira, entre certo e errado.
Felizmente, as humanidades não são isto, e estas ainda têm representantes para nos recordarem o que elas na verdade são, ou deveriam ser. Em Portugal há certamente muitos professores para o fazer (basta ler este blog, por exemplo), mas neste momento vou citar o conhecido autor e professor de filosofia espanhol, Fernando Savater. É num capítulo do seu livro O Valor de Educar que o título deste texto se baseia. Sobre estes temas, Savater diz o seguinte:
(...) hoje abundam não só a superstição e as actividades milagreiras (...), mas também o menoscabo da razão, convertida numa simples perspectiva entre outras, sem direito a um reconhecimento especial e suspeita de dogmatismo quando o reclama. Regista-se aqui uma quebra das humanidades, porque não há humanidades sem respeito pelo racional, sem preferência pelo racional, sem fundamentação racional através da controvérsia do que deve ser respeitado e preferido. É frequente ouvirmos acusar este racionalismo de uma fé cega na omnipotência da razão, como se semelhante credulidade fosse compatível com o uso crítico dessa capacidade ou pudesse ser desmentida sem se recorrer a esse uso. A razão só é beatificada pelos que a utilizam pouco, não pelos que a empregam com uma assiduidade exigente. (...)Muitos dos anti-humanistas, que acusam a educação moderna de ser "demasiado" racionalista, querem dar a entender que ela despreza a intuição, a imaginação e os sentimentos. Mas será excesso ou antes insuficiência de racionalismo uma tão má compreensão da complexidade humana? Não será antes a razão que concebe a importância do intuitivo, aproveita a fertilidade da imaginação e cultiva (...) a vitalidade dos sentimentos? A razão conhece e reconhece os seus limites, não a sua omnipotência: distingue o que podemos conhecer justificadamente do que imaginamos ou sonhamos (...). Para a razão, todos somos semelhantes, porque é ela própria a grande semelhança entre os humanos. A educação humanista consiste, antes de tudo em fomentar e ilustrar o uso da razão, essa capacidade que observa, abstrai, deduz, argumenta e conclui logicamente. (...)Bem vistas as coisas, sim, há crise das humanidades. A relativização digamos pós-moderna do conceito de verdade é um claro indício dela. Não há educação se não houver verdade a transmitir, se tudo for mais ou menos verdade, se cada qual tiver a sua verdade igualmente respeitável (...).(...) as opiniões convertem-se em expressão irrefutável da personalidade do sujeito: "esta é a minha opinião", "essa será a sua opinião", como se o importante nelas fosse a de sabermos a quem pertencem e não em que se fundamentam. (...) Soma-se a tudo isto uma obrigação devota de "respeitar" as opiniões alheias (...), para não falarmos já do "direito a uma opinião própria de cada um", que não é entendido como direito de cada um pensar por si próprio, mas como o de manter a sua crença sem se deixar incomodar por objecções incómodas. Este subjectivismo irracional enraíza-se rapidamente em crianças e adolescentes, que se habituam a supor que todas as opiniões - quer dizer, a do professor que sabe do que está a falar e a sua que parte da ignorância - valem por igual (...).
É de facto pena que este tipo de pensamento de que Fernando Savater fala neste capítulo seja actualmente abundante nas humanidades. É que, ao abandonarem a razão, as humanidades perdem aquilo que têm de mais valioso: aqueles que melhor a sabem utilizar.